O tempo não volta para trás
Miguel Portas
Artigo publicado no Diário de Notícias, Opinião, 30.04.05
Imagem "picada" n'A NOITE |
E assim se chegou a uma mão-cheia de nada. À esquerda, cada um irá por si, e provavelmente o mesmo sucederá à direita. Teria sido interessante construir um projecto de esquerda que superasse a lógica interpartidária e fosse capaz de envolver as melhores energias da cidade. Mas quem o podia impulsionar, não precisava de o fazer; e quem nele se poderia envolver, não tinha como tomar a iniciativa. É pena, mas não vem daí mal ao mundo. Em Outubro, o PSD perderá por muitos. Como nunca perdeu em Lisboa. As convergências acabarão por se fazer, mas em resultado da avaliação que os votos farão das diferentes propostas. Uma solução que decorra da verdade dos votos é sempre preferível a uma coligação de desconfiados.
Vaticano: Em Timor-Leste, o Governo quis tornar facultativas as aulas de Religião e Moral. Razoável, não? Mas contra esta ideia civilizada, a Igreja promete a revolução. Também ela gosta de conservar o tempo em formol. Principalmente, quando alguém toca nos seus privilégios.
Em Madrid, o Parlamento aprovou os casamentos civis entre homossexuais. É polémico, mas não mais do que isso. Contudo, para a Igreja, a medida justifica a desobediência dos oficiais judiciais, incorrendo em risco de despedimento ou a condenação por discriminação. Por causa de um simples acto civil, promete guerra sem quartel.
Permitam a franqueza: contra a fome e a miséria extrema, a Igreja ora e realiza obra social. Contra a propagação da sida em África, propugna a resignação em vez do preservativo. Mas já contra os gays apela à subversão da ordem democrática. É normal?
Durante 1700 anos, o Vaticano protegeu ou justificou, em regra, todas as ordens dos poderosos, por injustas que fossem. Mas contra os gays, o mínimo é a jihad. Se o Céu existir, muito penarão os cardeais para lá entrarem!
Paris: O Le Monde publica uma carta de V. Assante, dirigente do PS francês, onde este relembra as condições que o PS para subscrever uma Constituição Europeia. Entre elas base jurídica clara para a protecção dos serviços públicos; inclusão do crescimento e do emprego como objectivos-guia da Comissão e do Banco Central Europeu; governo económico da União com suporte orçamental incluindo base tributária própria e capacidade de endividamento; fiscalidade, política social e política externa como domínios de decisão por maioria qualificada (e não por unanimidade); e ainda a revisão futura da Constituição por referendo simultâneo e maioria qualificada da população e dos Estados. A gaveta das promessas esquecidas explica o cisma no PSF.
Toulouse: Quinta-feira, a nova coqueluche da indústria europeia, o Airbus 380, fez o seu primeiro teste de voo. Os chefes do "sim" usaram o novo mamute dos ares em benefício próprio. Mas o A380 demonstra exactamente o contrário: que não há política industrial europeia sem financiamento e capacidade de endividamento públicos, e que o seu adversário é o sacrossanto princípio da "livre concorrência" que modela todo o tratado. Hoje, a Europa não teria conseguido fazer o A380. Aliás, não é por acaso que o comissário da Concorrência tentou, ainda no início deste ano, cortar as ajudas europeias ao projecto...
Luxemburgo: Freitas do Amaral anunciou que Portugal não hesitaria em vetar o quadro comunitário de apoio para 2007/2013, se fosse necessário. É bom que leve a sério as suas palavras. Não há a menor chance de se chegar, sequer, a um razoável acordo para os países das periferias da União. Na negociação de dinheiros, não há grama de Europa, apenas "interesses nacionais". Quem quiser perceber a Europa do tratado, ponha os olhos nesta negociação. Uma Europa alargada, mas proibida de recorrer a recursos próprios e ao endividamento, é um desastre para todos. É como uma alcateia de esfomeados em redor de uma carcaça. Não entender que este tratado apenas eterniza as soluções que o tempo esgotou começa a ser matéria do puro domínio da estupidez.